O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo.
Merleau-Ponty
TEXTO ARTISTA
Por qual caminho contar essa história? Pelas questões formais inerentes às obras de arte visuais e o desejo que me impulsionou a realizar esta série? Ou pelos desdobramentos e deslocamentos desse percurso?
Calçadas nasceu de uma atração irresistível por quinze lajotas de concreto ricamente texturizadas, localizadas em pleno eixo monumental de Brasília. Essa mancha pictórica, resultado provável da ação do tempo e do acaso, fica ao lado de um semáforo… e foi assim, de dentro de um carro, que pude observá-la.
Minha primeira ação ocorreu no final de 2014. Optei pela frotagge com o desejo de capturar, de forma íntima e direta, as tramas e texturas dessa calçada plana e pouco movimentada. De lá para cá, foram produzidas mais de 40 obras, todas elaboradas a céu aberto e acompanhadas de registro fotográfico. Fora do ateliê e sujeita às intempéries, terra e chuva somaram-se aos papéis e materiais de arte que fui experimentando ao longo do processo, e a outros não tão usuais, como vassouras, rodos e panos de chão. A construção das obras foi movida por questões formais, interesse que se manteve durante toda a série, além de uma gradativa sensação de pertencimento.
A cada investida, novas percepções e insights. A ausência de pedestres denuncia a Brasília que conhecemos, uma cidade de ruas largas e calçadas estreitas, onde o “lugar” do cidadão parece renegado. O uso da fotografia contextualiza o simbolismo do espaço. Estávamos, a calçada e eu, em pleno coração político do Brasil, formando um vértice entre o Congresso Nacional e o Museu da República.
Sinto-me inteiramente à vontade, mesmo que exposta e suja, toda tingida de pigmentos e grafite. Trabalho de forma intuitiva e focada, apesar do fluxo dos carros e de olhares curiosos ou inquisidores. Percebo a potência performática desse ato que conduz a uma outra Brasília, menos oficial e mais humana. Prossigo com gratidão às pessoas que colocaram a mão na massa para construir esta cidade e suas utopias. As lembranças da Escola Parque, local de despertar para a arte, me trazem o desejo de mapear territórios afetivos. Faço isso munida da máquina fotográfica. Registro, neste novo ato, espaços abandonados e reconstruo minha história.
Regina Pessoa, junho de 2016
Onde moram as ideias?
Ralph Gehre e Renato Lins,
CURADORES
Junho de 2016
É estranho como na naturalidade e cotidiano da vida tropeçamos em coisas dispersas no mundo que nos prendem a atenção de modo singular. Esses encontros despertam uma espécie de noção de pertencimento, como se no mundo estivessem dispersos códigos ou pistas para que nós pudéssemos juntá-las, descobrindo um pouco mais sobre nós mesmos e sobre o próprio mundo.
O que é a história da humanidade senão a história desses encontros entre algo do sujeito e algo disposto no mundo? Ou antes, da tentativa de tradução dos sentimentos e ideias por trás desses encontros? É exatamente disso que trata a série Calçadas, de Regina Pessoa. De um desses raros acontecimentos.
A artista encontra alguns dos assuntos de sua pesquisa na matéria bruta de um caminho cimentado, uma específica calçada localizada bem perto deste Museu, sobre a qual trabalhou a frotagem, técnica de fricção direta que decalca o relevo de uma superfície, transferindo-o para um suporte. Nesta exposição vemos de que forma Regina consegue reconhecer valores específicos no espaço ao redor, coletando-os na suspeita de um sentido a ser explicitado dentro de seu trabalho.
Essa atitude aponta para um tipo de potência dispersa no mundo, um ponto de encontro entre intenção, intuição e acaso de onde se extrairá um assunto, ou antes, de onde os assuntos poderão vir a nos encontrar. A artista então se ocupa do trabalho compulsivo de tentar captar para si, por meio da frotagem, aquele algo existente, por exemplo, na simplicidade de uma calçada. Ora, não é exatamente isso que fazemos com o mundo, todo o tempo?
Talvez a linguagem e toda atividade humana sejam mais ou menos isso, tentativas de frotar o mundo, captar aquilo que de primeiro nos moveu a reproduzir algo íntimo da nossa relação particular com o mundo.
O mais bonito no trabalho de um artista é o impulso que em nós ele desperta, fazendo-nos querer entender e acompanhar seu pensamento, conhecer aquilo que a ele pertence e move-se, para fora e para dentro, quando tenta entender-se como criatura única.
Regina Pessoa conduz seu trabalho buscando o sentido das coisas nas próprias coisas, para encontrar o valor de um trabalho em arte, lembrando-nos de que é sobre o chão que erguemos nossas vidas e que é justo que dele emerja uma expressão.